quinta-feira

farto do diz que disse
diz que viu
diz que aconteceu
diz que estava lá um amigo de um amigo
que é amigo teu
farto de ouvir
o mais bonito
o mais astuto
o mais sensível
mas o incrível
é que ao espelho eu só vejo o mais bruto
farto das mesmas queixas no mesmo caderno
farto da caneta que me leva ao inferno
farto de mim de ti de nós contra o resto do mundo
a selecção deles é mais forte
ficaremos sempre em segundo
ninguém te disse
ninguém te contou
ninguém te falou
não dá para ganhar
eles dizem foge foge
mas eu fico
foge foge
e eu fico
cada vez mais bandido

não sou luz da serra
nem sombra nem luz
nem sombra da noite
no alvor da madrugada
não sou coisa nem nada
talvez louco
o louco não tem número
o limite da soma é o vazio
não sou murmúrio de rio
nem cigarro viciado
nem ponta de cio
nem lua patética
crescendo e fugindo do tempo que passa
não sou quebra-luz
nem gavinha entrelaçada num abraço de frio
sete raios de sol queimaram o sonho
sete chuvas de esperma o fecundaram
já não sou resina
nem merda nem mijo
nem sangue nem seiva
morreram afrodites e leões de pêlo fulvo
quando se inventou a alma
e eu não sou mais do que rescaldo
já não sou poeta nem nada

Manel Cruz - O Canto dos Homens-Conto


Porque já não há nada melhor a dizer.

sábado

são ruas

Estas ruas são castanhas e verdes, como o sorriso que eu não sorri ontem, nem nunca. São ruas cheias de pedras que doem ao pisar, mas não doem ao olhar, nem ao toque menos severo de uma mão minha. São ruas sem medo nem fumo, sem frio nem porco, mas cheias de pudor.
São ruas velhas esquecidas pelo tempo.

Estas ruas são minhas sem ser, e sou delas mesmo que nunca tenha sido de ninguém. São ruas que te prendem, que te gritam um ‘fica aqui, sê miserável a nosso par’ numa voz doce e convincente, e soam a canto de flauta oca, de madeira. Nestas ruas respira-se bem, mas respira-se obrigado.
Quem disse que era livre aquele que se vergasse à Natureza em si?

Estas ruas minam-nos a mente de ideias brilhantes, ideias perfeitas e inquestionáveis. São as ruas do glorioso saber eterno. Se as seguires serás feliz, se as seguires serás correcto, serás moral. São ruas de uma alegria contente que te encanta o coração, cantando-te na mente, baixinho, tudo em que acreditas.
São ruas que te dominam e abafam, e nelas morrerás se não lhes vires o fim.

São ruas que te encontram.
São ruas que te perdem.
Para sempre.

sexta-feira

estás aí?

Um sonho não é mais que um fio de cabelo a voar ao vento, correndo cada brisa como que perseguindo um rio. E sorrindo a cada gota de orvalho um reluzente brilho de espelhos.

O caminho era vago no nevoeiro de tão clara manhã, era branca esta manhã. Tão branca que quase lhe escapavam os vultos de alguém que passava. Os vários alguéns que passavam falhavam também a vê-la, ou a reconhecê-la, e toda a gente se perdia na melodia cansativa de um dia feliz. Contente, talvez. Se calhar não feliz, mas talvez contente. Definitivamente, contente. Ou melancólico.

E nesta imensa mansidão deste dia, ela vagueava os seus olhos pela rua lavada, à sombra das varandas da rua que seguia. Do alto ouvia a música retorcida dos gira-discos antigos, os gritos de um cadavérico filme de terror romanceado. Entrar e sair, almoçar um chouriço bem português com um vinho lá de casa. De França, pouco champanhe lhe importava.

Talvez mais tarde, quando lhe alienassem todos os gestos num toque desgostoso do chique, viesse a banhar-se num champanhe rançoso francês, e francês só por ser de França. A França dos imigrantes e da violência vil dos bairros dos tão ditos franceses importados que pouco se importavam. Mas o mesmo sangue seco pintava as paredes daquela porta, na rua, que dava para mundos debaixo de qualquer limiar de pobreza. De espírito.

Em dois segundos tomou o tempo de observar um alguém que se distinguia no nevoeiro fechado. Amava, ou não reparava, em cada passo que dava, mas amava-se mais a si. Pobre de si, tão igual ao próximo gritante e fluorescente ser, ridicularizado por si, ridicularizado em si.

E no fundo, o nevoeiro não existia. Era só o cobertor aconchegante de uma noite podre, fria e suja que devorava cada segundo de uma bonita existência para a repugnar com vómitos e escarros dos seres fluorescentes. Viam-se e cheiravam-se ratos e ratazanas na noite. Na noite ou no dia, porque a hora ou o tempo pouco interessavam. Interessava sim o lugar. O lugar era português. A situação era desconcertante.

E o nevoeiro era cegueira de quem não quer ver.