sexta-feira

estás aí?

Um sonho não é mais que um fio de cabelo a voar ao vento, correndo cada brisa como que perseguindo um rio. E sorrindo a cada gota de orvalho um reluzente brilho de espelhos.

O caminho era vago no nevoeiro de tão clara manhã, era branca esta manhã. Tão branca que quase lhe escapavam os vultos de alguém que passava. Os vários alguéns que passavam falhavam também a vê-la, ou a reconhecê-la, e toda a gente se perdia na melodia cansativa de um dia feliz. Contente, talvez. Se calhar não feliz, mas talvez contente. Definitivamente, contente. Ou melancólico.

E nesta imensa mansidão deste dia, ela vagueava os seus olhos pela rua lavada, à sombra das varandas da rua que seguia. Do alto ouvia a música retorcida dos gira-discos antigos, os gritos de um cadavérico filme de terror romanceado. Entrar e sair, almoçar um chouriço bem português com um vinho lá de casa. De França, pouco champanhe lhe importava.

Talvez mais tarde, quando lhe alienassem todos os gestos num toque desgostoso do chique, viesse a banhar-se num champanhe rançoso francês, e francês só por ser de França. A França dos imigrantes e da violência vil dos bairros dos tão ditos franceses importados que pouco se importavam. Mas o mesmo sangue seco pintava as paredes daquela porta, na rua, que dava para mundos debaixo de qualquer limiar de pobreza. De espírito.

Em dois segundos tomou o tempo de observar um alguém que se distinguia no nevoeiro fechado. Amava, ou não reparava, em cada passo que dava, mas amava-se mais a si. Pobre de si, tão igual ao próximo gritante e fluorescente ser, ridicularizado por si, ridicularizado em si.

E no fundo, o nevoeiro não existia. Era só o cobertor aconchegante de uma noite podre, fria e suja que devorava cada segundo de uma bonita existência para a repugnar com vómitos e escarros dos seres fluorescentes. Viam-se e cheiravam-se ratos e ratazanas na noite. Na noite ou no dia, porque a hora ou o tempo pouco interessavam. Interessava sim o lugar. O lugar era português. A situação era desconcertante.

E o nevoeiro era cegueira de quem não quer ver.

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